Figuras do estrangeiramento

Numa sociedade de contrato como é a urbana moderna os tipos humanos urbanos surgem como função social.

O desenvolvimento da Individualidade está em correlação directa com a expansão do grupo social (que, por sua vez, resulta da modernidade urbana). Ou seja, a individuação da personalidade se não é completamente um produto urbano, foi fortemente potenciada pela modernidade. Os tipos individuais ou “tipos sociais” modernos (propostos por Simmel) são então formas sociais que podem ser analisadas através dos indivíduos que lhes dão forma – tais como o estudante erasmus (não é turista nem emigrante), o turista, o agricultor urbano, etc. 

O indivíduo é uma construção urbana das cidades modernas pois nas cidades tradicionais não existia, porque havia uma sobreposição do colectivo pelo individual. Assim, apenas era visto como tal se fosse excluído do clã/comunidade. O membro da comunidade que não consegue cumprir a função consignada no seio da mesma, sente-se um indivíduo dentro da comunidade (estrangeiramento face ao grupo) e é visto como um perigo -> ligação entre terror e solidão -> os impuros

É pela convivência entre estranhos que se construiu o indivíduo, ou seja, as cidades modernas interiorizaram o indivíduo. Com as sociedades industriais o ser-se estrangeiro tornou-se um fenómeno de massas e a solidão um atributo do mesmo -> séc. XIX

Nota: Baudelaire foi o que mais cedo apreendeu o novo tipo de estrangeiramento -> Paris ; Edgar Allan Poe (1840) foi um dos primeiros a caracterizar o estrangeiramento -> Londres

A relação moderna com o estrangeiramento é complexa e constitui-se em função de uma ansiedade e incompletude -> existe uma tensão entre integrar a multidão (sendo-se igual a todos os outros) e assumir a individuação (tendo a liberdade de ser diferente).

O Homem na Multidão (Poe 1840) apresenta um tipo ideal da dualidade do homem urbano moderno: o narrador e o homem da multidão são duas faces da mesma personagem, evidenciando a relação complexa entre multidão e individuação e como ambas revelam solidão. Demonstra pois o desejo de alienação do indivíduo na multidão, bem como o desejo de individuação observadora protagonizante, isto é, a luta entre igualdade e liberdade e o Id e Superego (inconsciente/ instintivo VS consciente/moral).

A figura do estrangeiro aparece no Frankenstein (dualidade entre humanidade e inumanidade), no Jackle and Mister Hyde (dualidade na estrutura urbana: West and East Side) e também no Retrato de Dorian Grey (fronteira interior entre o ego[1] e o Id).

3.2O Vagabundo e o Estrangeiro

Walter Benjamim caracterizou o estrangeiramento (ou seja, deu um nome ao homem da multidão) através da figura do Flâneur (vagabundo). Assim possibilitou uma ponte entre a compreensão da solidão do homem da multidão (séc. XIX) e a do homem do centro comercial (final séc. XX) e entre a cidade refúgio (séc. XIX) e os refúgios da cidade da civilização capsular (final séc XX, início séc. XXI).

Simmel, no séc. XX, fala-nos da metrópole na qual o estrangeiro é a figura central e o estrangeiramento de si, a própria consequência da vida mental ou personalidade metropolitana. É estrangeiro aquele que se consegue enquandrar e não qualquer indivíduo de uma qualquer nacionalidade, é alguém que (como o pobre) pertence ao grupo mas que reúne em si a dualidade da proximidade e da distância. Além disso, o estrangeiramento de si não é completo porque implica uma dualidade entre a necessidade de reserva mental face aos outros e o desejo de causar uma impressão nos outros suficientemente forte.

*Matéria anterior / para relembrar: Em A Metrópole e a Vida Mental, centra-se na grande cidade, na Metrópole. Explica que o espaço influência a vida mental e que tratamos os outro em função da nossa reserva mental e das nossas categorias (irmão, mãe, vizinho, etc.). Com a metrópole dá-se o desenvolvimento da racionalidade por oposição à sensibilidade/afecto, pelo que se dá uma preponderância do “espirito objetivo” sobre o “espirito subjetivo”. 

Os aspetos do racionalismo prendem-se com a economia monetária (esta implica uma atitude pragmática, uma indiferença implacável), com a padronização espaço-temporal (a calculabilidade do tempo sustentada pelo surgimento dos relógios, surgiu pela necessidade de organização da sociedade – a não observação pontual dos compromissos conduziria ao caos), a justiça formal, o desenvolvimento da ciência e a personalidade blasé (projeção da indiferença, desejo de exclusividade – o dinheiro toma o lugar de toda a diversidade das coisas, sujeitando todas as diferenças ao critério “quanto custa”). 

Caracteriza a metrópole como uma arena de luta entre forças “externas” e “internas” que tem como consequências a atrofia da “cultura subjetiva”, resultantes de uma hipertrofia da “cultura objetiva” (somos um mero elemento da engrenagem dominado pela organização material; a vida é cada vez mais composta por elementos da cultura impessoal que suprimem comportamentos peculiares e interesses pessoais específicos).*

Esta preponderância do racionalismo, do intelecto e da personalidade blasé é corporizado pela figura do estrangeiro e em 1908 no “The Stranger” apresenta esta relacionada com a figura do viajante ou vagabundo. Uma vez que o crescendo do capitalismo comercial marcou esta época, Simmel identifica o estrangeiro como o comerciante e historicamente com o judeu.

Portanto, o estrangeiro é uma figura “móvel” que contacta com uma grande massa de pessoas mas que não tem com elas nenhum laço de parentesco, corporizando a proximidade e distância (o estrangeiro está perto de nós devido a características comuns a nível social e cultural, mas ao mesmo tempo, está longe porque essas características são globais, universais a todos). Isto é, o estrangeiro tem uma atitude específica de objetividade que é composta por uma indiferença e envolvimento  e que pode ser definida pela sua liberdade (por não estar ligado a um hábito ou precedente consegue lidar com as suas relações de forma objetiva). Ex: em algumas cidades italianas, eram chamados juízes de fora porque todos os nativos tinham um envolvimento, quer familiar que político.

Logo, o estrangeiro não é tratado como indivíduo mas como estrangeiro de um certo tipo (ex: os cidadãos com uma propriedade pagavam uma determinada taxa consoante as suas flutuações, os judeus, por serem judeus, tinham de pagar uma taxa diferente)

 -> novo tipo de personagem urbano: o estrangeiro que fica e passa a pertencer ao grupo no seio de uma cidade e ainda assim, permanece estrangeiro

Vagabundo VS Estrangeiro

                                     Viajante: que não tem trabalho; à procura de; faz biscates

                                      Proletário: estavam sempre na iminência de perderem o trabalho                  

Aqueles que apenas passam, não permanecem

                              Estrangeiro próx.: apesar de estar num local mantém distâncias socioespaciais Estrangeiro

                              Estrangeiro distante: estrangeiro desconhecido

Permanence mas continua estrangeiro; é um mediador entre mundos – ex: o senhor da mercearia a quem facilmente contamos as novidades, que depois conta ao próximo cliente, funcionando como um “jornal” que espalha as notícias -> o comerciante usava um caderno de notas (escrita como elemento de poder, produz negociação e distância)[2].

Simmel é um percursor de Wirth: responsável pela primeira definição de diferença entre o urbanismo e o ruralismo, estudou Chicago, uma cidade-fronteira entre a Civilização e um Oeste Americano perigoso, sendo uma cidade-central onde todo o mundo confluía e portanto uma cidade de vagabundos e estrangeiros. Foi responsável ainda pela teoria da hierarquia das cidades, abrindo por estes motivos, as portas para o entendimento das outras figuras de estrangeiramento.

3.3O Cosmopolita e o Refugiado

As figuras do estrangeiramento no séc. XX e XXI foram produzidas em função de uma relação de proximidade e distância a que a própria geografia cultural europeia e americana não são alheias.

Se para Simmel, o estrangeiro num mundo dominado pelo espaço urbano reduzido, é aquele que chega de fora e que fica, permanecendo estrangeiro, Wirth numa perspetiva de influência transcontinental, encara a metrópole como constituída apenas por estrangeiros. 

É neste quadro, que aparece a figura do refugiado. Para Hannah Arendt, o refugiado é aquele que perdeu a sua pátria mas que não se acomoda e assimila a cultura do novo país, continuando a identificar-se como refugiado. 

Nota: o aparecimento desta nova figura prende-se com o final da 1ª Grande Guerra e pela nova ordem criada pelos tratados de paz que mudaram profundamente a estrutura territorial e demográfica da Europa central e oriental.

Giorgio Agamben propõe que a actual figura do estrangeiramento é a do homo sacer (figura obscura da lei romana: uma pessoa que é excluída de todos os direitos civis), da vida nua ou dos denizens, ou seja, um ser em que “o direito a ter direitos” é posto em causa pelo facto de a sua existência evidenciar que os direitos do Homem apenas existem em função dos direitos do cidadão. Ou seja, o ser humano que perder a cidadania, perder a pátria está no caminho para se tornar um ser sem direitos, um ser de vida nua, sujeito a todo o poder soberano e até, à morte. 

O 11 de Setembro veio agravar a situação pois a transmutação que vai do estrangeiro imigranterefugiado ao inimigo-terrorista tornou-se ténue. A falência sócio-política do Estado-Nação e a emergência de uma nova ordem sócio-política transnacional, leva a concluir que o refugiado é a figura do estrangeiramento que cada vez mais se impõe a todos e cada um de nós. 

Já Hannerz distingue os cosmopolitans (padrão de vida de enquadramento nacional) e os locals (padrão de vida que segue a lógica da cidade), afirmando que os primeiros não existem sem os segundos e que ambos tem o interesse comum de salvaguardar a diversidade cultural. Afirma ainda que o padrão de vida cosmopolita se alargou a uma cultura mundial (devido à facilidade de mobilidade da actualidade). 

Caracteriza o cosmopolitanismo como uma perspetiva, um estado de espírito ou um modo de gerir os sentidose  o cosmopolita como aquele que tem como orientação própria uma vontade de se envolver com o Outro, implicando antes de mais uma abertura intelectual e estética em relação a experiências culturais divergentes, um procura dos contrastes e não da uniformidade. Ou seja, há uma mistura de “aficionado” (estado de abertura de uma habilidade pessoal para se inserir) e de “competência” de cultural geral ou específica (capacidade de gerir sistemas de significados, de se inserir noutra cultura através da observação, da audição, da intruição e da reflexão) no cosmopolita. A abertura ao Outro é ainda uma nova forma de construção do self.

Este autor estabelece ainda uma diferença nítida entre o mero viajante (turistas, exilados, migrantes trabalhadores, etc) e o cosmopolita (os intelectuais).  Os turistas não são cosmopolitas porque visitam outros locais segundo o propósito “home plus”, logo os benefícios de mobilidade são regulados (por exemplo, ir-se ao México pelas praias); os migrantes trabalhadores pelo mesmo motivo, vão por obrigações económicas; os exilados, embora pudessem ser cosmopolitas, não costumam ser porque o envolvimento com o país de acolhimento foi forçado.

O conceito de expatriado é o que mais associado aos cosmopolitas, pois escolheram viver noutra região mas com a consciência de que podem voltar ao seu país de origem quando quiserem. 

Os intelectuais são então indivíduos que querem saber mais sobre outras culturas e que se “sentem em casa” em culturas diferentes das que estão habituados. Ou seja, são indivíduos com credenciais e com um capital cultural descontextualizado capazes de, rapidamente, se recontextualizarem em diferentes geografias através de processos reflexivos, problematizadores e preocupação com a metacomunicação. No estudo de Kadushin acerca dos intelectuais americanos, tornou-se percetível que cada cultura tem “conceitos de valor” centrais pelos quais os indivíduos se regem e que o papel dos intelectuais é encontrar essa relação e traçar a aplicação desses conceitos ao longo do tempo.

O Cosmopolita de Hannerz parece ser um tipo ideal semelhante ao estrangeiro de Simmel -> tensão entre proximidade (aficionado) e distância (competência) -> pode-se ver no cosmopolita de Hannerz a “cultura objetiva” de Simmel. É a exponenciação das novas populações transnacionais que possibilita a emergência dos cosmopolitas (que podem nunca mais voltar a sentir o país de origem como a sua casa). 

Por outro lado, Guido Martinotti identifica uma nova população transnacional concreta de metrópole actual. Para caracterizar a transformação das cidades industriais na metrópole, refere a existência das diversas populações urbanas em sobreposição: habitantes, pendulares, consumidores urbanos e metropolitan businessmen. Centrando-se nestes últimos, refere-se a população que pertence a um estrato médio-alto e que se caracteriza pela sua grande mobilidade transnacional, vivendo entre metrópoles – chegam à cidade de avião para trabalhar e consumir, podendo ser considerados habitantes temporários. 

As metrópoles que conseguem atrair esta população tornam-se metrópoles de 3ª geração, ou seja, centros transnacionais ou mesmo cidades globais. Hannerz vai mais longe, identificando quatro categorias de populações transnacionais: 

-a população ligada aos negócios transnacionais

-as populações do 3º mundo

-as populações de cultura

-os turistas

Estas quatro são responsáveis pela construção das cidades mundiais contemporâneas, sendo fundamentais para a produção de uma tradução contínua e critica entre culturas, elemento inerente ao próprio cosmopolitismo como padrão cultural.

Em suma

-Imigrante: double-bind -> vivem num local sem poderem voltar ao país de                                   origem; tem de se adaptar à sociedade que o abriga, por muito diferente que                              seja da antiga (provoca conflito interno pessoal/social)

Refugiado

-Terrorista: evidencia-se com o 11 de Setembro, pois fez com que os                            preconceitos viessem ao de cima

resulta de uma mudança de paradigma geo-política (Estado-Nação; leis de desnacionalizaçao)

-Cosmopolitica/estrangeiro-inimigo/denizens: “o direito a ter direitos” é                                posto em causa porque só se têm direitos quando se pertence a uma pátria Cosmopolita  

-Cosmopolitismo/hospitalidade/citizens: homem de negócios                                metropolitano, que está sempre a viajar, vivendo em hóteis; figura                                                    hegemónica; entidade passa a ser transnacional (mais alargada)

resulta de um paradigma sócio-espacial

Nota: O mundo parece assemelhar-se a algo entre um parque temático e um campo de concentração, em que imigrantes-refugiados se tornam trabalhadores-organizadores, explorados de actividades de suporte a funções básicas de habitação, serviçoes e recreação de cosmopolitas-metropolitan businessman.

Apesar de todos viverem num desenlace de contínua tensão, desconfiança e solidão, existem várias vertentes: metropolitana-infra-estrutural (perspetiva de suporte à habitação e serviços), metropolitano-recreacional (processos geridos por Estados-Nação -> ex. LA, Vegas), metropolitano-excepcional.

Existe ainda uma distinção entre configuração metropolitana-cosmopolítica (caso de Bruxelas pois apesar de fragmentada, procura uma cultura unida) e metropolitana-cosmopolita (caso de Istambul enquanto cidade entre dois continentes e duas civilizações).

3.4O Indivíduo, a Cidade e o Mundo

Os cenários-fronteira em que se vislumbra um novo paradigma global em emergência e a sua relação com a figura do estrangeiro-inimigo, foram analisados por Balibar (2006) e sintetizados em quatro grandes modelos:

-“Clash of Civilization” de Huntington: onde o estranho é identificado como inimigo

-“Global Network” de Castells: as fronteiras são aniquiladas e por isso, a distinção entre “estrangeiro” e “nativo” são abolidas, pelo que o inimigo se torna uma figura fantasma.

-“Center-periphery”: mundo polarizado em que os níveis de estranheza são hierarquizados e determinados geopoliticamente

-“Cross-over”: formações sociais são culturalmente híbridas e por isso, a figura do “estrangeiro” e o “inimigo” são desassociadas (mas não abolidas)

Estes modelos de globalização servem para entender como estamos a criar a própria globalização, através de uma análise bottom-up, em que se torna claro que o conceito não é global mas sim glocal (ou seja, depende do local do mundo onde estamos e do contexto).

4.1 Mapeando por Questões e Regiões

O início do séc. XXI evidencia a continua transformação da população mundial em urbana (mais de 50% vive em cidades).

-Europa, América Norte e Latina e Caraíbas -> regiões largamente urbanizadas, 75% da pop.

-Ásia e África –> regiões menos urbanizadas mas prevê-se a transição demográfica nos próx 20 anos.

podemos estar presentes da 2ª maior revolução antropológica:  a do urbanismo planetário.

Apesar de o planeta urbano não ser uniforme e as diferenças estatísticas refletirem e produzirem diferenças sociais e culturais, a elite urbana dos PED tem mais em comum com a elite dos PD do que com os próprios concidadãos. Ou seja, apesar das grandes diferenças que existem entre as diversas regiões e cidades, é possível encontrar-se algumas semelhanças no que se refere às funções das cidades e à estruturação do sistema urbano em si mesmo.

Portanto, vivemos num Arquipélago Urbano Global (pois existe uma maior interligação entre cidades do que países: dizemos “nunca fui a NY” em vez de “nunca fui à América”), existindo um Urbanismo Regional diferenciado, por oposição a um Urbanismo Local, feito de cidades periféricas praticamente esquecidas. Assim sendo, torna-se necessário ver a perspetiva do Urbanismo Transnacional para uma melhor compreensão do planeta urbano.  Ou seja, mapeiase a situação urbana do planeta segundo uma perspetiva regional e global.

4.2 Cidades e desenvolvimento: as principais questões

Fez-se uma análise top-down dos relatórios da HABITAT de 96 e 2001 para um melhor entendimento das transições que se deram. 

No relatório de 96, é o termo desenvolvimento que aparece e não o termo globalização, sendo enquadrado na Tradição do Sistema Mundo. Identifica 6 grandes questões para entender a situação urbana:

1.O papel das cidades no desenvolvimento

2.As tendências urbanas

3.A limitação das conquistas sociais

4.As tendências nas condições de habitação

5.A governação

6.O desenvolvimento sustentável

Relativamente ao primeiro, as cidades que se caracterizam como centros artísticos, científicos e tecnológicos com uma grande importância na transformação social apresentam-se como agentes centrais do desenvolvimento. O facto de uma população predominantemente urbana ser inevitável e uma vantagem para o desenvolvimento coloca o desafio na gestão e governação, implicando uma interação positiva entre desenvolvimento urbano e rural para promover a sustentabilidade mútua. 

As tendências urbanas são portanto a megalópole e a cidade informal (cidade bairro-de-lata) que são vistas com receio devido à dificuldade de gestão e governação das mesmas.

Com o crescimento populacional, os receios prendem-se com a capacidade (ou falta dela) de resposta em termos do desenvolvimento económico e social (infra-estrutras, serviços, etc.). 

Quanto às tendências nas condições de habitação, é referida uma diferença dramática entre o Norte e o Sul, sendo este último o que representa maior pobreza. As condições de habitação destes indivíduos são muito inferiores àquelas dos que vivem em absoluta pobreza no Norte e relacionam-se com: habitações sobrelotadas, deficiências em termos de acesso à àgua, instalações sanitárias, saneamento e recolha de lixos (o que resulta num risco premanente de saúde) -> 600 milhoes de habitantes em África, Ásia e América Latina sofrem destes problemas.

Tem ainda, consequências habitacionais específicas como a insegurança na posse de habitação (pela construção ilegar em zonas desaquadas para a construção o que leva a uma grande probabilidade de despejo) e a possibilidade de fazer parte dos sem-abrigo.

Para ultrapassar esta situação, é necessário que os governos se tornem capacitadores (em vez de doadores), regulando a competição pela terra, possibilitando terrenos urbanizáveis a custos reduzidos e com serviços básicos, financiando a aquisição de materiais de construção e a construção da habitação, desburocratizando a legalização do processo construtivo. Para tal, deve ter em conta as parcerias das organizações comunitárias, das ONGs e do sector privado.

A governação torna-se a chave para todo o desenvolvimento, afirmando-se neste relatório, a necessidade de uma nova estrutura institucional para as autoridades urbanas, no sentido de uma maior capacitação para responder ao desafio do crescimento populacional e à necessidade de infra-estruturas. Deve portanto haver uma democratização e descentralização de tarefas e responsabilidades e ainda um maior autonomia crítica e capacidade de procurar apoio técnico e angariar fundos.

Por fim, a questão do desenvolvimento sustentável (ou seja, garantir a existência de recursos para a próxima geração) passa por assegurar uma adequada gestão ambiental, dos recursos e dos desperdícios que minimize os impactos negativos da produção e consumo urbanos na população e ainda a implementação de estratégias de gestão e desenvolvimeno urbanos em função da natureza finita dos recursos para absorver e/ou minimizar os desperdícios.

Nas dimensões sociais do desenvolvimento, devem ser garantidas a equidade, justiça, integração e estabilidade social. A redução da pobreza e exclusão social e o apoio da governação são fulcrais para uma estratégia de capacitação, bem como um nova visão do planeamento para responder ao crescimento populacional em função de uma adequada gestão do uso da terra mas também para mobilizar os recursos técnicos, humanos e financeiros. 

Por outro lado, no relatório de 2001, a globalização já aparece como óbvio em relação às cidades, até mesmo pelo nome (“Cities in a Globalizing World”), enquandrando-se na Tradição de Urbanismo Transnacional pois já se rege segundo a lógica da “Rede de Cidades Globais” e das “cidades-mundo”, colocando ênfase nos constrastes e polarizações produzidas pela globalização. Dá ainda uma grande importância aos fluxos, centrando na importância e duplacidade das TIC. 

Surgem portanto 7 questões que visam entender a globalização e o seu efeito sobre as cidades e os sistemas urbanos:

1.Desigual distribuição dos benefícios e custos da globalização

2.A natureza desiquilibrante da globalização

3.A ligação que as aglomerações humanas estabelecem entre a globalização económica e o desenvolvimento humano

4.A descentralização e o papel crescente dos governos locais

5.A necessidade de novas redes de cooperação

6.O fortalecimento do processo de desenvolvimento político

7.Novas formas de governança e estratégias políticas para a vivência urbana

Relativamente à primeira questão, o desafio da governação é o de substituir como motor do desenvolvimento o crescimento económico por uma diminuição da desigualdade na distribuição dos benefícios e custos da globalização económico-tecnológica, considerando-se que uma melhoria neste sector poderá ter mais alcanse que o anterior, no aumento das conquistas sociais e redução da pobreza. É esta desigualdade, a uma velocidade, escala, âmbito e complexidade nunca antes vista, que criou um planeta de contrastes com: constrastes nos padrões de urbanização, na riqueza das cidades, na competititividade, nas oportunidades, nas prioridades locais e globais, dentro dos países e regiões e ainda dentro das áreas urbanas.

Quanto ao problema do desequilíbrio e da sustentabilidade do desenvolvimento, não é demográfico mas sim relativamente ao acesso às TIC – são estas que se correlacionam com a urbanização, criando a natureza desequilibrante da globalização. Correlacionam-se ainda com a concentração em grandes cidades globais do capital, dos espacial e do controlo das empresas e mercados, criando grandes espaços para a expansão das mesmas. Assim sendo, as TIC têm transformado o planeta num arquipélago de tecnopolis, aumentando a desigualdade, polarizando a mesma. Deste modo, surge o desafio da governância que deve equilibrar os objetivos da globalização num esforço cooperativo entre governo, sector privado e sociedade civil para superar o crescimento da probreza e da desigualdade e mesmo da polarização que a globalização tecno-económica tem promovido. 

Para além do crescimento da pobreza e das assimetrias regionais, evidenciou-se neste relatório, a fragmentação urbana produzida nas cidades centrais e nas suas extensões, gerando a “cidade dual”. Esta polarização tem, de um lado, “privatopias” das cidades móveis de riqueza e comércio (a Cidade de Luxo residencial associada à Cidade Controlada do trabalho) e, no outro extremo, a Cidade Abandonada ao nível residencial e a Cidade Residual ao nível do trabalho -> polarizações visíveis em NY, Londres ou Shangai.

A ligação entre as aglomerações humanas, a globalização económica e o desenvolvimento humano (questão 3) é destacada no relatório de 2010, sendo que as TIC estão na base da reestruturação das aglomerações humanas, criando fragmentações intra-urbanas, conexões globais e disconexões locais. Ou seja, a lógica tecno-económica que se concentra em certas regiões leva ao crescimento dos económica e culturalmente poderosos e a uma polarização urbana entre info-ricos e info-pobres.  Para responder a este desafio de polarização local e glocal, deve-se potenciar estratégias que suportem o exercício da cidadania e a defesa dos “direitos à cidade” através de ações locais e globais.

Quanto à necessidade de descentralização e crescente importância do papel dos governos locais, afirmou-se que, os últimos, devem ver reforçados em termos de legitimidade política, responsabilidades e recursos uma vez que as áreas metropolitanas são arenas centrais de competitividade global. Refere-se ainda que estes governos têm competências limitadas para responder aos urgentes desafios de abrigo, intra-estruturas e serviços pelo que deve haver parcerias entre o sector privado e a sociedade civil.

Este relatório afirma ainda a necessidade de reforças as políticas do processo de desenvolvimento através de uma monitorização e avaliação adequadas pela utilização das TIC para facilitar a difusão da informação. Finalmente, refere-se a necessidade de novas formas de governança, que recuse o meros mecanismos de mercado e se sustente antes numa relação de complementaridade entre governos e sociedade civil – por exemplo, a criação de um facebook sobre o bairro da Ajuda onde se explicitam os problemas do mesmo, o que pode ser melhorado, os problemas dos idosos, etc. Ou seja, a sociedade deve ter um papel mais activo uma vez que a intervenção cívica contribui para a governação, portanto o Estado deve apostar na ligação de si próprio com as comunidades.

Relatório de 2004

Indica 3 principais impactos gerais da globalização sobre a cultura urbana: diversidade e enriquecimento; medo e polarização; estandardização – tendo em conta a “era da migração transnacional” que levou à criação de “espaços étnicos urbanos”, constituindo um desafio gerir cidades multiculturais.

Consequências económicas: as cidades são o lugar da mudança económica e social – há evidência que os países que se urbanizaram mais cedo, têm rendimendos per capita mais elevados. A influência da globalizalização sobre as cidades foi amplificada em meados dos anos 90 devido à liberalização financeira e abertura de mercados pois tornaram evidentes diferentes atratividades dos investimentos, o que aumento a desigualdade. O processo de desindustrialização e de descolazição das empresas provocou desemprego. A “race to the bottom” (fuga de capitais para o Oriente em busca de custos de produção mais baixos) acelarou a economia informal, o processo de exclusão social e as clivagens raciais e étnicas.

Consequências sociais: evidenciam-se através de uma crescente diferenciação social através do aumento da pobreza e da desigualdade urbana. As consequências sócio-económicas reforçam os problemas dos que têm dificuldade de acesso às infra-estruturas básicas e criam novos pobres nas classes médias

Consequências institucionais e políticas: enfraquecimento do sector público, devido às companhias privadas externas e ao processo de privatização. 

Consequências espaciais: 3 objetivos – servir necessidades locais, globais e servir de conexão entre os dois. Atenção às estradas, portos, etc. tornou-se fundamental. O relatório evidencia ainda 4 outros efeitos da glob. Sobre a cultura urbana:

1.As cidades mudaram a atenção para actividades e localidades exteriores ao seu seio – devido ao aumento de competitividade

2.A integração vertical da produção (produtores – fornecedores – financiadores – distribuidores) é substituída por uma horizontal, onde as funções são distribuídas por diversas localizações geográficas

3.A localização das indústrias e serviços deixam de ser determinadas pelos mercados ou padrões de consumo, passando a concentrar-se em torno da ótica de conectar actores e funções altamente dispersos. 

4.A antiga estrutura urbana fragmenta-se e a proximidade física deixa de ser a variável decisiva. Esta fragmentação é referida como “geometria variável”, o que significa que as periferias das cidades tornam-se urbanos/cosmopolitas pela saída das grandes cidades das empresas e pessoas. A geometria variável implica uma maior resiliência (capacidade de qualquer organismo manter as suas funções, adaptando-se continuamente, face a choques externos – o que implica governação)

Consequências demográficas: prevê-se que a população urbana vai aumentar o que terá impactos em termos de saúde pela incapacidade de resposta das infra-estruturas. A diferença nas estruturas demográficas dos PD em relação aos PED, relacionada com a contínua migraçao transnacional, implicará políticas bimodais dirigida à população mais idosa e à mais nova. 

Face a estas consequências, a agenda que se apresenta para as políticas de gestão urbana são:

1.Criar cidades multiculturais e inclusivas

2.Manter a estabilidade e o equilíbrio face à mudança externa

3.Construir e reforçar capacidades – se houver uma plataforma onde os indivíduos expõem as suas capacidades que estão dispostos a trocar, dár-se-à uma economia de troca. Ex: gostaríamos que o nosso filho aprendesse música mas a escola fica muito longe, no entanto, até há alguém no nosso bairro que sabe tocar piano e que pode ensinar o nosso filho a troco de outra função

4.Estabelecer uma estratégia de decisão de longo prazo

5.Manter a infra-estrutura física do mundi

6.Financiar investimentos e operações urbanas

7.Mobilizar para a sustentabilidade

4.3.1. O Norte / Regiões Mais Desenvolvidas e o Sul / Regiões Menos Desenvolvidas 

Norte (MDR)

Sul (LDR)

América do Norte, Europa, Japão, Nova

Zelândia e Austrália

América Latina, África, Ásia (excepto Japão, Oceânia, Austrália e NZ)

Crescimento tende para zero;

Projeção 2003: Norte terá apenas ¼ contra 4/5 do Sul do total da população urbana do planeta

Crescimento entre 1% e 2% até 2030, associado a um aumento da esperança de vida, resultando num grande crescimento absoluto

Em 85: 98 cidades > 1milhao;  em 2000: 115 e  em 2015 terá 127

Sul terá cerca de 70% do total das cidades do planeta com 1 milhão ou mais de habitantes;  162 / 265 / 311

O crescimento do número de megacidades manter-se-à em 4

Prevê-se chegar às 19

Os relatórios que fazem esta análise por regiões revelam a diversidade da situação urbana

        4.3.2A Análise da situação urbana por regiões transnacionais

Norte

Similaridades, em termos de processos urbanos, da Europa e da América do Norte -> hipótese da evolução da urbanização nestes países, implicar um ciclo ou uma espiral de 4 fases, aplicável a toda a região internacional, a um sistema nacional, a uma cidade, a um centro urbano ou a todos ao  mesmo tempo, embora a ritmos diferenciados.

Assim sendo, os processos urbanos nestes continentes são:

a)1950-1960: crescimento e concentração metropolitana (urbanização); suburbanização

b)1970-1980: desconcentração populacional e revitalização não-metropolitana; desurbanização/ contra-urbanização

c)1980-1990: concentração e revitalização metropolitana; gentrificação/re-urbanização

Ou seja, as quatro fases são, em suma: Urbanização -> suburbanização -> desurbanização -> reurbanização

Quanto aos sistemas urbanos nacionais e regionais como um todo, existem assimetrias entre uma malha urbana regional densa e concentrada bastante desenvolvida enquanto que a restante região ou Estado-Nação se encontra bastante menos desenvolvido. Isto é, há um padrão de crescimento urbano com forte polarização.

O padrão tradicional centro VS periferia tem vindo a ser questionado e a possibilidade de outros padrões emergiu. No relatório de 96, põe-se a hipótese de os EUA ser antes concebido como um padrão de “desenvolvimento bi-costal” (o centro transita em função da mudança de uma economia industrial para uma economia de serviços) e, no caso europeu, que seja possível um sistema menos evidente na sua estruturação de concentração e centralização e mais competitivo e cooperativo segundo as oportunidades geradas.

Parece ainda haver uma tendência para o desenvolvimento de novas formas urbanas, nomeadamente as CMSAS (Consolidated Metropolitan Statistical Areas) nos EUA que são a junção de várias MSAS (Metropolitan Statistical Areas), ou seja, as CMSAS são conjuntos de áreas metropolitanas interligadas entre si em função de uma ou mais centralidades. Estes têm uma importancia cada vez maior na Europa.

Estas meta-metrópoles têm um papel importante na economia. Na lógica dos arquipelagos urbanos centrais, as MDR (regioes mais desenvolvidas) tem todas as cidades-mundos centrais mas a Europa e os EUA tem 8 das 9 cidades-mundo primarias e 8 das 9 secundárias. Ou seja, segundo a tipologia de Friedman ou a de Thrift, todos os quatro verdadeiros centros internacionais são na Europa e EUA – logo, estes são o centro da globalização económica.

SUL

Relativamente às três grandes regiões do Sul (Ásia, América Latina e Caraíbas e África) parecem haver mais diferenças do que semelhanças devido à diversidade em função de particularidades históricas e culturais e de relações da cidade com o sistema urbano nacional e internacional. No entanto, já similitudes que decorrem da mudança demográfica comparável, da herença colonial comum e da inserção na economia global.

A partir da década de 80, nota-se um abrandamento na intensidade e ritmo de crescimento, demonstrando que tais regiões já se encontram no processo de “transição demográfica” (passagem de altas para baixas taxas de natalidade e mortalidade). Quanto à população urbana, a América Latina e Caraíbas têm um nível de urbanização de 75,3% em 2000, enquanto que a Ásia fica-se pelos 36,7% e a África pelos 37,9%.

Um dos aspectos mais evidentes do crescimento urbano no Sul é o das grandes cidades. Estas três regiões, tinha 63,8% das cidades com 1 milhão ou mais de habitantes em 1985, em 2000 71,3% e em 2015 prevê-se que seja 72,4%.  Em relação às mega-cidades, tinham 17 das 19 existentes no mundo em 2000 e em 2015 terão 21 das 23 -> entre estas regiões, destaca-se a Ásia.

Por outro lado, em relação à estruturação dos sitemas urbanos, África demonstra um atraso face ao desafio da globalização (a seguir à Guerra Fria, África era um continente desglobalizado, esquecido neste processo).

Processos urbanos em África:

a)De 1950 a 1960 dá-se uma rejeição da cidade devido aos processos coloniais e a criação de bairros. 

b)Já de 60 a 70 (após a descolonização), dá-se a invasão da cidade, formando-se a “cidade auto-ajuda”, isto é, crescem numa lógica de cidade-refúgio, de cidade informal e autoajuda (ou seja, a sociedade organiza-se em torno do pequeno comércio). 

c)Sendo que só em 1980-1990 é que há a consolidação da “cidade informal”. 

d)Na actualidade o que se verifica é que a China constrói estradas e cidades em África, a troco de petróleo e outros recursos naturais.

Relativamente à Ásia e à América Latina e Caraíbas, a reestruturação dos sistemas urbanos está relacionada directamente com a globalização. É possível estabelecerem-se similitudes entre as “áres metropolitanas extensas” da Ásia e a descentralização das populações das áreas metropolitanas para as 3 grandes regiões centrais da América Latina e ainda comparações destes sistemas urbanos regionais com as CMSAS da Ámerica do Norte e as “Regiões Urbanas Funcionais” na Europa. 

Estes arquipélagos urbanos em formação são âncoras regionais das diversas globalizações possíveis (hegemónicas ou não) e apenas no continente africano não se vislumbra fenómenos semelhantes, podendo apenas referir-se uma “horizontalização” da mesma (ou seja, a sua expansão e periferização). Uma vez que a morfologia urbana é reflexo de uma reorientação da função urbana para a economia mundial, a sua ausência em África é mais um sinal da desglobalização desta região. 

Nota: Na hierarquia das cidades-mundo caracterizada por Friedman, a Ásia e a América Latina são representadas através de uma cidade-mundo primária (Tóquio) e como cidades-mundo secundárias dos países semi-periféricos 4 da AL, 5 da Ásia e apenas 1 africana enquanto que na hierarquia de Thrift, apenas a Ásia está representada no segundo nível hierárquico, correspondente a “Centros de Zona”, com as cidades de Singapura e Hong-Kong. 

Tais hierarquias revelam bem a situação completamente diferenciada entre a AL e Caraíbas e a Ásia por um lado e a África, por outro.



[1] Ego: aspecto racional que controla os instintos

[2] O que levou à construção de uma sociedade de contratos